O
que se relata é a saga do negro
em relação ao Ocidente. De sua
escravização após o rapto da
África, até o início do resgate
da auto-estima. O mito do
Narciso grego é o suporte épico
para ler todo o processo. Como
se sabe, Narciso apaixonou-se
pela beleza da própria imagem,
ao mirar-se no espelho das águas
e ali morreu transformando-se na
flor que recebe o seu nome. A
leitura que aqui se faz não é a
mesma de Freud, que vê o
narcisismo como um complexo
psicológico de desequilíbrio.
Trata-se sim, do resgate da
dignidade subjugada, pois para
se dominar uma raça o algoz
quebra toda as reservas morais e
de auto-respeito daqueles que se
pretende dominar. Esse talvez
seja o maior mal da escravidão,
enquanto o processo mental e não
como alguns pensam, que a
injustiça reside nas algemas e
nas correntes. É chegada a hora
do negro colocar-se em todos os
lugares e não na odiosa condição
de "colocar-se em seu lugar".
No
trabalho, na dança, na música,
no esporte, enfim, em todos os
campos a negritude se faz
presente, dando mostras vivas de
que o preconceito racial é
influenciado. O preconceito é
antes de tudo social, pois
nega-se àqueles que constituíram
a riqueza brasileira o respeito
e sobretudo, gratidão. Sim,
ingrato é o país que não
reconhece o sustentáculo de sua
maioria laboriosa, mas ainda
segregada.
Nesse sentido, o enredo é uma
leitura crítica da história da
raça negra no Brasil. Todavia,
ao invés de se mostrar o negro
como escravo submisso e anônimo,
mostra-se em sua real grandeza
de trabalhador infatigável,
inspirador da música e
coreografia, senhor absoluto do
espaço, na magia esportiva.
Narciso Negro trata o negro
olhando para si mesmo, não como
pária social na condição de
encarcerado, vagabundo,
malandro, vítima indefesa do
cruel processo de exclusão
social, mas, antes de tudo, o
enredo apresenta uma visão
alegre, crítica e humorada do
negro, orgulhoso de seu passado,
consciente de seu presente e
otimista em relação a seu
futuro.
Ao
se olhar com dignidade e com
orgulho, o negro resgata sua
auto-imagem e se conscientiza de
que a condição de oprimido não é
só sua, mas de legiões
intermináveis de seres anônimos,
independente de coloração.
Narciso Negro é uma história
escrita pela espécie humana,
ignorada por muitos, vergonhosa
para uns poucos e proposta de
esperança para uns outros tantos
que almejam a construção de um
mundo melhor e mais justo.
A
Nenê tem o justificado orgulho
de apresentar:
NARCISO NEGRO
NARCISO NEGRO
"Mesmo depois de abolia a
escravidão
Negro é a mão
De
quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida
Esfregando o chão
Negra é a mão
É
a mão da pureza
Negra é a vida
Consumida pelo fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com
água e sabão
Negra é a mão
De
imaculada nobreza."
(Gilberto Gil)
As
vozes de África emudecem quando
a insaciável e faminta boca
mercantilis... através de seus
dentes rudes, dilaceraram a
liberdade das savanas. Caçado e
humilhado, o negro, jogado no
porão da civilização européia,
perdeu sua identidade. Era
"preciso" destruir o orgulho
dessa gente para poder
dominá-los, domá-los e
escravizá-los. Dos Orixás
eclodiu o grito de uma raça.
Resgatar a auto-estima,
recuperar a própria imagem
passou a ser o desafio. Não
implorar por migalhas, mas
reconquistar a essência
aviltada, sem curvar-se diante
do algoz passou a ser a grande
adversidade. É no lado da
cultura greco-romana, que o
negro mutilado em sua dignidade,
recupera a beleza de sua imagem
interior, a exterioridade de
seus traços singulares e a
leveza genial de seus
movimentos. Sublimação de
morada, mas triunfal resgate do
Narciso Negro.
O
enredo é a saga do negro. Do
seqüestro em massa - extraído da
terra com raiz e tudo e até o
reconhecimento parcial da dança,
na música, na atividade física e
lamentavelmente na humildade
anônima da força de trabalho de
uma nova nação. Infelizmente a
imagem se reflete para uns
poucos, mas deverá chegar o dia
em que o reflexo se ampliará,
envolvendo a muitos.
Que a passarela seja a vida e
não só a avenida. Hoje um
desfile, amanhã um processo
vencedor. Hoje uma modéstia
contribuição à reflexão. Amanhã
o despertar de uma consciência
crítica elaborada, ampla, total
e irrestrita. Certamente o
espelho das almas ganhará a
vertical, num movimento de total
resgate da negritude.
O
trágico final do Narciso grego
não serve como referencial
explicativo para a trajetória da
raça em direção à felicidade
plena. Este é o mito do Narciso
Negro.
Do
engenho ao ouro, do café à
musicalidade em comum, da prisão
ao culto sincronizado dos
movimentos corpóreos,
timidamente o Narciso
cristalizou-se Zumbi, Xica da
Silva, Machado de Assis, Carlos
Gomes, João Cândido, Milton
Nascimento, Pelé, e outros
tantos. O Narciso Negro não se
curva neste lago de incertezas.
Mira o futuro, enquanto desfila
no presente e sobrevive aos
grilhões de uma passado que não
é seu, mas da ganância
insaciável, que a tudo,
implacavelmente devora.
Narciso Negro é pura reflexão
sobre o orgulho de ser negro no
espelho da fria lâmina de
exploração humana.