CANUDOS
Anunciata
era uma mulher muito bonita, além de forte e destemida. Assistiu todo o
desenrolar do drama que foi a Guerra de Canudos. Conheceu Antonio
Conselheiro e viu seu séquito de jagunços e cangaceiros, beatos e
beatas, cegos e aleijados, loucos e todo o tipo de miseráveis que
acabariam por morrer de fome ou de sede, varados de bala ou na ponta de
baionetas, despedaçados pelas granadas ou decapitados pela soldadesca
gaúcha, os corpos insepultos jogados à beira das estradas, na caatinga
ou no interior de belo Monte, cidade-mundéu, fim de todos os sonhos e
delírios.
Os 11 meses
que duraram os combates foram tempo suficiente para que Anunciata se
apaixonasse por um soldadinho carioca. Apaixonou-se e amancebou-se.
RIO DE
JANEIRO
Com o fim da
guerra, agarrada a seu soldadinho, Anunciata veio para o Rio de Janeiro
num navio de transporte da tropa, cortesia do governo da Jovem
República, juntamente com mais de um milhar de outros baianos e baianas
que, de uma maneira ou de outra, estavam atrelados aos corpos de tropa
que tinham sede no Distrito Federal.
Vieram,
chegaram e se desesperaram; não havia moradia e não havia trabalho para
todos.
O Governo,
para aliviar um pouco a situação, resolveu doar parte de um morro da
cidade para que os baianos construíssem duas casinhas ou barracos. O
lugar foi batizado como "Morro da Fivela", lembrança da serrania onde
estavam assestados os canhões na guerra contra o Conselheiro e sua
gente. Com o passar dos meses, com seu sotaque arrevesado, os baianos
começaram a chamar o lugar de "Morro da Favela", nome que perdura até os
dias de hoje.
Anunciata,
no entanto, não ficou muito tempo no morro. No começa do século XX já
está na cidade. Trabalha como diarista, faxineira, costureira, doceira e
cozinheira de forno e fogão. É pau para toda a obra, não enjeita
trabalho; em um determinado momento de sua vida começa a aceitar
encomendas de doces e salgados para festas e banquetes e, assim vai
criando uma clientela.
De segunda à
sexta-feira Anunciata vende comida baiana em um tabuleiro no Largo da
Carioca e, nos fins de semana do mês de outubro, desloca-se até o
longínquo bairro da Penha onde também vende seus doces e salgados,
durante as festas da Igreja.
Com o
dinheirinho pingando daqui e dali e já não tendo mais de sustentar o
soldadinho - que um dia saiu de casa e nunca mais voltou, Anunciata, já
conhecida como Tia Ciata, começa a se aprumar na vida. Sua clientela de
doces e salgados aumentara bastante e ela começa a ficar conhecida e
famosa.
Ali pelos
anos de 1905/1906, Tia Ciata está ligada a "Tio Hilário" - Hilário
Jovino Ferreira - compositor de grupos de Rancho, cantor de jongos e de
partido alto, mestre-sala da gafieira, capoeira respeitado e dançarino
de maxixe, um baiano acariocado, também conhecido como "o negro mais
alegre da Cidade Nova".
Verdadeiramente, Tia Ciata estava em excelente companhia.
DE VOLTA
ÀS NEGRAS RAÍZES
Um dia Orixá
baixou na terra e chamou Ciata; falou bem alto seu nome cristão na
orelha direita e, bem baixinho, falou seu nome de nação na orelha
esquerda.
Nada mais
havia a fazer. Ciata compreendeu que tinha um destino a cumprir. Então
entregou-se...
Em
1910/1911, por aí, abandonou o forno e o fogão e abriu uma casa de
Candomblé na Rua Visconde de Itaúna, 117, quase esquina com a Praça Onze
(de Junho).
Os primeiros
freqüentadores do Terreiro de Tia Ciata, fora de dúvida, foram os
baianos do Morro da Favela,seu pessoal, gente que veio para o Rio após o
fim da Guerra de Canudos, para eles já quase esquecida no tempo.
Depois
vieram os moradores da Cidade Nova, do Estácio e da Saúde, vizinhos
curiosos de conhecer aquela religião tão alegre, com suas cantorias e
suas danças e suas mulheres tão bonitas, vestidas à moda d'África.
Por último
veio gente de outros bairros mais distantes e, por fim, gente de todo o
Rio de Janeiro. Vinham, conheciam a religião e os rituais e ficavam
cativados pela beleza de tudo o que viam. Ficavam e nunca mais se
afastavam.
A força de
Tia Ciata animou outras Mães e Pais de Santo. Pouco a pouco, outros
terreiros iam sendo abertos e o Candomblé passou a se espalhar pela
cidade.
TIA CIATA
E AS BAIANAS CAEM NO SAMBA ENQUANTO O COURO COME NA AVENIDA
A
contribuição de Tia Ciata, e de outras Yalorixás baianas com terreiro no
Rio de Janeiro, para a cultura popular brasileira foi inestimável; é dos
terreiros que surgem as maiores novidades no campo da música, por
exemplo. Não podemos esquecer que o primeiro samba gravado, o "Pelo
Telefone" de Donga e do "Peru dos Pés Frios" foi composto e cantado pela
primeira vez no sobrado da Rua Visconde de Itaúna, 117, durante uma
festa no já longínquo ano de 1916.
Donga, João
da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Peru, Heitor dos Prazeres e muitos
outros, sempre fizeram música na casa de Tia Ciata desde que, pela
primeira vez, foram trazidos por Tio Hilário.
Todos estes
músicos e compositores eram gente da cidade. Jamais tinham dado um passo
para fora da cidade do Rio de Janeiro, de maneira que não conheciam o
Candomblé ou apenas o conheciam de ouvir falar. O contato com a cultura
afro-brasileira, seus rituais e suas músicas, transformou estes artistas
em outros homens e suas músicas em outras músicas. Na áres da composição
procuraram inserir o andamento do baticum dos atabaques em suas obras e,
por fim, acabaram por agregar os "couros" em seus conjuntos musicais,
marcando de forma definitiva o nascimento do samba urbano.
Quando as
Escolas de Samba foram fundadas no fim dos anos vinte, já trouxeram para
as ruas uma ala de percussão, a ala da bateria, produto direto dos 3
atabaques sagrados do Candomblé...
As escolas
saíram, também, com uma outra ala muito especial, verdadeira convidada
no Carnaval: a Ala das Baianas. No início muita gente achou estranho
aquele grupo de mulheres vestidas com roupas africanas em um desfile de
Carnaval mas, aí também tinha coisa de terreiro.
Diz a lenda
que Ismael Silva e sua gente do Estácio, certo dia procurou o terreiro
de Tia Ciata para pedir autorização dos Orixás pois pretendiam criar um
novo tipo de Bloco Carnavalesco a que eles chamavam de Escola de Samba.
Diz a lenda,
também, que Tia Ciata após proceder à benção do pavilhão do novo bloco,
informou que os Orixás ficariam mais contentes, se o barco das Yawô's
fosse para a rua junto com a Escola. Então aconteceu que as baianas
saíram ás ruas.
As pessoas
viam e não entendiam por que aquelas mulheres giravam e giravam ao som
da batucada. Na verdade elas estavam dançando para o Orixá. Traziam para
a rua a força e o axé do terreiro. Eram uma fonte de energia vital se
expondo a todos. Perfumavam o ar com seus perfumes. Acalmavam os ânimos.
Traziam a alegria da religião para a avenida.
A Ala das
Baianas é a jóia mais rara de uma Escola de Samba. Mesmo nos dias de
hoje, sem que suas componentes saibam ou percebam, o Orixá está na rua.
Orixá vem atendendo ao chamado das Yawô's que dançam para ele no ritmo
da batida dos couros da bateria.
Naquele
distante Carnaval, quando as Baianas saíram pela primeira vez na
avenida, o Carnaval tornou-se respeitado e visto com outros olhos. Era o
orgulho e a força de uma raça desfilando pelas ruas na figura de suas
sacerdotisas.
Ah, Bahianas!
Cantem, girem, nunca deixem de existir...
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