A MUSA EM
FORMA DE CANÇÃO
Musa da
inspiração... um canto novo ecoa pelo ar, e, ao longe, um vulto de
mulher - meio deusa, meio mito - surge radiante, mãos ao piano, como que
em meio à criação de uma obra-prima. O povo adere ao canto e entra no
ritmo contagiante do samba, extasiado. Ao fundo, um estandarte azul e
rosa tinge de alegria a majestade desta musa, trazendo à nossa lembrança
antigos carnavais, como um rio que deságua no mar do presente,
desvendando nossas verdadeiras raízes. Eis que é carnaval, e a nossa
escola, comovida, vem à passarela repartindo contentamento e enaltecendo
a mulher brasileira através da musa Chiquinha Gonzaga, mais do que nunca
livre no seu caminhar!
UM CANTO
DE MIL GERAÇÕES
Francisca
Edwiges, mais conhecida como Chiquinha Gonzaga, nasceu no Rio de Janeiro
a 17 de outubro de 1847, no aristocrático bairro do Velho Rio. Seus
pais, o marechal de campo José Basileu Neves Gonzaga e dona Maria de
Lima Gonzaga, impuseram-lhe educação refinada (como acontecia nas
famílias tradicionais da época), primando pela erudição: Chiquinha
levava várias aulas aprendendo a tocar piano ainda criança, revelando
seu gênio musical.
Cedo também
conheceu a vida repressora imposta às mulheres de seu tempo: aos treze
anos foi lhe escolhido um noivo, filho de um rico comendador, que lhe
proibia de tocar piano, justamente seu maior desejo. Após algum tempo de
casada, resolveu livrar-se dos grilhões que prendiam-na àquela união,
abrindo mão do conforto e da segurança de uma vida financeira até estão
estável. Desta forma, contrariando os costumes da época, sabia ela que,
doravante, as portas se fechariam para si. E assim aconteceu. Marcada
pela sociedade, traçou um caminho de abnegação e sacrifício, tudo por um
ideal de liberdade e amor à arte: abraçando a música, sua verdadeira
vocação, deixou às futuras gerações um inestimável acervo cultural, na
alegria de seus versos, ritmos e melodias.
A MPB NA
ÉPOCA DO II IMPÉRIO
As
manifestações musicais mais antigas conhecidas no Brasil são o lundu
(gênero de dança de origem africana) e a modinha (canção amorosa e
sentimental de origem portuguesa). O lundu passou a ser praticado também
como gênero de salão, ao contrário da modinha, que, nascida nos salões
da aristocracia, popularizou-se, servindo de base às futuras serestas e
às demais formas líricas brasileiras.
Influenciada
pelo lundu e pelas modinhas, Chiquinha Gonzaga (nascida durante o II
Império) tomou parte também da difusão de gêneros de danças de salão
européias (como polca, valsa, tango, mazurca e shottish), muito em voga
naquela época, e que deram origem a novos ritmos e tendências,
resultantes do modo de tocar do músico brasileiro. Vêm daí o estilo
instrumental do choro e do maxixe, que terá forte presença já no início
do século XX, até ser substituído, mais tarde, pelo samba e pela
marchinha.
O
CARNAVAL CARIOCA
No Rio de
Janeiro, o carnaval crescia em importância, ano após ano, com o povo
saindo às ruas e caindo na folia. Até a família imperial participava do
entrudo, folia típica do século passado. Em 1899, pouco antes do
carnaval, o Cordão Rosa de Ouro encomendou à Chiquinha Gonzaga uma
música que anunciasse a todos a sua chegada à distância. Nasceu então "Ô
Abre Alas", pioneira marchinha carnavalesca, que fez sucesso por mais de
vinte anos. "Ô Abre Alas" talvez não tenha sido a primeira, mas foi a
pioneira.
UM POUCO
DE SUAS OBRAS
Chiquinha
Gonzaga compôs cerca de duas mil peças musicais, entre modinhas, polcas,
quadrilhas, tangos e maxixes, além de diversas encomendas para musicar
poesias. Com Viriato Corrêa compôs "A Sertaneja" (1915), "Juriti" (
1919) e uma opereta, em 1933. Suas músicas, bem ao gosto popular, eram
assoviadas nas ruas, cantadas nos serões familiares e tocadas nos cafés
e nos bailes do Rio de Janeiro, conhecendo o sucesso numa época em que
os meios de divulgação como o rádio ainda não eram conhecidos.
No Teatro
Carioca, musicou peças como "Viagem a Parnasso" (de Arthur de Azevedo) e
"Festa de São João" (de 1883), que ficou inédita. Setenta e sete
partituras para teatro foram escritas, entre operetas, burletas e
revistas-de-ano. Em 1887, Chiquinha colaborou de forma original na peça
"A Zizinha Maxixe", de Machado Careca, com suas músicas "O Gaúcho" e "O
Corta Jaca", caricaturando sonoramente quadros nacionais (principalmente
os que retratavam o cotidiano carioca). Criou também um ritmo
requebrado, jocoso, que traduzia a gíria carioca: o forrobodó, uma
burleta de costumes cariocas, estrada em 1912, com estrondoso sucesso. A
peça teve cerca de 1.500 representações.
Realizou seu
primeiro recital em 1885, denominado "A Filha de Guedes", no Teatro
Recreio Dramático. O evento causou grande burburinho no meio artístico,
já que, pela primeira vez, um mulher regia uma orquestra (neste caso, a
Banda da Polícia Militar). Chiquinha, já famosa pianista e grande
compositora, tornou-se, a partir daí, a primeira maestrina brasileira.
Boêmia
republicana, Chiquinha Gonzaga foi grande amiga de Olavo Bilac, Nair de
Teffé, Osório Duque Estrada, Joaquim Callado (grande flautista
brasileiro) e José do Patrocínio (com quem abraçou a causa
abolicionista).
À FRENTE
DE SEU TEMPO
Logo após
ter completado cinqüenta anos de carreira, em 1935, Chiquinha Gonzaga
faleceu aos 88 anos de idade. O peso do tempo, a luta pela sobrevivência
e os sofrimentos causados por uma sociedade hipócrita em nada alteraram
a magia de seus versos e melodias; ao contrário, seu talento musical em
prosa e verso floresceu, berço aonde tremulava o estandarte de seu gênio
criador.
A
compositores teve um dos gestos mais heróicos na sua juventude, quando a
mulher era alvo de toda sorte de preconceitos e asfixiada em suas mais
inocentes aspirações. A vida, porém, abençoou-lhe com um coração
realmente iluminado: Chiquinha Gonzaga passou toda a sua existência
gerando arte através do amor.
Exemplo de
coragem, dignidade e perseverança, Chiquinha Gonzaga esteve sempre à
frente de seu tempo, como tão poucos que ousaram a concretização de um
ideal nesta vida.
"Ó abre-alas
que eu quero passar
Ó abre-alas
que eu quero passar
Eu sou da
lira, não posso negar
Eu sou da
lira, não posso negar!"
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