APRESENTAÇÃO
Durante dez meses de
pesquisas e de trabalho que envolveram diretamente
dezenas de pessoas, a Escola de Samba Império do
Cambuci se preparou para apresentar em forma de arte
popular reflexões sobre a reconstrução da identidade
cultural dos negros brasileiros.
Trazidos da África
como escravos no período compreendido entre a
segunda metade do século XVI e o ano de 1850 (data
da extinção do tráfico negreiro), os negros perderam
a sua origem. Ficaram sem antepassados, nomes ou
bens próprios, enquanto cativos no Brasil, lutaram
pela sobrevivência e reinventaram sua própria
existência, ao conseguir manter através da tradição
oral, mesmo que parcialmente, as culturas, usos,
costumes, tradições e conhecimentos ancestrais.
O tema-enredo "Império
Voltas às Origens" (Império Padá ai Ilú re), de
autoria da folclorista e pesquisadora Raquel
Trindade, é uma "viagem" da Escola de Samba em busca
dos fragmentos da memória dos negros africanos
arrancados a força de sua terra natal pelo
capitalismo comercial e pelo movimento de expansão
colonial. Representa também, como ressalta a letra
do samba-enredo do compositor Dorinho Marques, o
respeito de nossa Escola a esses negroafricanos e
seus descendentes pela contribuição que deram, e
continuam dando, para a organização social,
política, econômica e cultural do Brasil.
Diante da
impossibilidade de distinguir - no âmbito de um
enredo - todos os grupos africanos que deram origem
aos afro-brasileiros (os estudiosos cadastraram
cerca de 280 etnias), a Império optou por apresentar
amostrar da vida e das características dos três
grandes grupos culturais de negros transferidos para
o Brasil: Bantos, Guineanos e Sudaneses. Cada um
abrangia populações de diferentes raças, clãs,
tribos, nações e culturas que, por sua vez, tendiam
a produzir uma grande variação de ramos do tronco
cultural original.
A quase totalidade do
visual da Escola reflete o ambiente geral da África
do passado, revelando o que era básico, o que era
comum a todos os grupos, resultado da existência de
sociedades bem estruturadas. As alas, os destaques,
os adereços e as alegorias (devidamente assinaladas
no "Roteiro - montagem do desfile") mostram detalhes
de épocas e de civilizações distintas, figuras,
objetos e peculiaridades que caracterizam os mais
conhecidos grupos africanos vindos ao Brasil. No
final do desfile, na parte referente ao nosso país,
a Escola mantém a mesma ambientação, pois foi essa
essência, transposta principalmente pela profunda
espiritualidade negra, que permitiu aos
afro-brasileiros a recriação de muitas das
particularidades africanas, além de sua
sobrevivência e da manutenção da personalidade afro.
ENREDO
Nossa Escola de Samba
conta neste desfile de Carnaval um pouco da história
da África e da influência dos negros africanos em
nosso país e na formação de nosso povo, do qual os
afro-brasileiros representam cerca de 70% da
população.
O "Império Voltas às
Origens" (Império Padá ai Ilú re) mostra ser falso o
quadro pintado sobre o negros pelos antigos padrões
de cultura européia, ao generalizar todos os povos
africanos como "antropófagos", "fetichistas" e
"bárbaros". Mais tarde, antropólogos e outros
estudiosos deram ao mundo outra visão do negro,
inclusive dividindo a população da África em raças e
culturas diferentes.
Os negros africanos
trazidos à força para o Brasil pelos escravocratas
do século XVI não apresentavam unidade racial e
lingüística. Pertenciam à várias raças e falavam
línguas diversas. Hoje se sabe que o primeiro homem
surgiu no continente africano e que o espanhol Pablo
Picasso, no início deste século, se inspirou nos
antigos desenhos africanos para criar suas famosas
pinturas, como facilmente podemos constatar pelos
trabalhos feitos pelo pesquisador francês Pierre
Verger, por muitos anos radicado no Brasil.
Para se fazer um
estudo a respeito da presença do negro na sociedade
brasileira temos que buscar suas origens.
Observaremos, então, que os seus antigos costumes
estão refletidos no que vemos hoje no Brasil,
constatando que apenas os locais e as formas como se
manifestam são diferentes. Na essência, porém, os
"princípios" e as "bases" são os mesmo de séculos
atrás.
Através da arte, a
Império do Cambuci quer mostrar ao povo em geral e
aos afro-brasileiros, em particular, um pouco do que
os negros criaram e, assim, propiciar o
fortalecimento da auto-estima entre seus atuais
descendentes.
O pesquisador Artur
Ramos divide as origens da cultura negra no Brasil
em três grandes segmentos:
a) Cultura Sudanesa -
representada pelos povos de cultura yorubá: Ijexás e
Ketus (Nigéria), Fantis-Achantis (Costa do Ouro) e
por grupos menores oriundos de Gâmbia, Serra Leoa,
Libéria e Costa do Marfim. Os Yorubás chegaram ao
Brasil por volta do início do século XIX, junto com
os negros provenientes da Costa do Ouro, ou seja,
mais de 200 anos após a vinda de representantes de
outras nações africanas. Existiram vários reinos na
Nigéria, como: de Oyó (com o príncipe Alafin), de
Ifé e de Abeokutá.
b) Cultura Guineana -
representada por Peul (Fulah), Mandingas, Haussás,
Tapas e Gurunsis. Dos povos africanos trazidos ao
Brasil, vários eram islamizados e foram chamados de
Malês (na Bahia) e de Alufás (no Rio de Janeiro),
bem como de Mandingas.
c) Cultura Banto -
representada pelas tribos oriundas de Angola, Congo
e Moçambique. Seus integrantes não tem tipos físico
e lingüísticos homogêneo e se dividem em muitos
grupos. Os primeiros chegados ao Brasil eram de
Benguela, Novo Redondo e de São Paulo de Luanda
(chamados de Angolas). Vieram também do Congo,
Loango, Cacongo e Zaire (chamados de Cabindas e
Congos). Os que foram embarcados em Moçambique
(Contra Costa) eram chamados de Macuas e Angicos.
O nosso samba, hoje um
dos símbolos da nacionalidade brasileira em cenários
internacionais, é de origem Banto. No Brasil são
originárias dos Bantos e dos Yorubás a herança
cultural da música, dos cultos religiosos, dos
ritmos, de instrumentos musicais (urucungos,
berimbaus, cuícas e atabaques), das danças, dos
fogos, de lutas (como a capoeira) e das artes
plásticas.
A Escola de Samba
Império do Cambuci diz ao afro-brasileiro que ele
pode e viver integrado com a cultura do branco,
assimilando-a, mas sem esquecer as origens de sua
própria cultura, que é rica e deve ser preservada e
desenvolvida.