“Passava a
noite, vinha o dia
O sangue do
negro corria, dia a dia
De lamento
em lamento
De agonia
em agonia
Ele pedia o
fim da tirania...”
(Mano Décio
e Silas de Oliveira)
Que essa
tirania, ou escravidão, foi um
terror, ninguém nega, e que até
hoje, de formas menos ou mais
sutis e abrandadas continua
existindo, a gente sabe. Mas
sabe também que, se não fosse a
maciça presença do negro no
Brasil não teríamos, entre
outras boas coisas e boa gente o
samba. Pois o abre-alas desse
enredo começa quando os
escravos, com sua ginga
driblando os chicotes de seus
senhores, conseguiram manter
aqui muitos dos seus costumes
nativos. Como os próprios
deuses, os orixás reverenciados
no Brasil através da
identificação com os santos
católicos. E com o passar dos
anos, impuseram as comemorações
religiosas dos brancos o caráter
festeiro de seus rituais, como
acontece até hoje, pelo menos na
Bahia. E foi justamente em
Salvador que, em procissões e
missas (antes, durante ou/e
depois), introduziram suas
danças de origem, conhecidas por
portugueses que os iam comprar
na África pelo genérico batuque.
Daí a batucada.
Bem antes
da abolição, beneficiados pela
Lei do Ventre Livre ou por
cartas de alforria, na maioria
das vezes compradas por eles
mesmos, através de organizações
que se assemelhavam a uma caixa
econômica – numerosos eram os
negros e mulatos que andavam
livremente pelas ruas de
Salvador. Quer dizer, livremente
já e alegoria, pois eram sempre
afastados das elites,
concentrando-se em bairros
populares, na orla marítima ou
no centro da cidade.
Trabalhavam
então por conta própria, em
ofícios como carregador,
lustrador, carpinteiro ou
pedreiro. Ou não trabalhavam, já
que o acesso a empregos estáveis
lhes era negado.
Vem daí,
quem sabe, sua fama de malandro.
Desde então se sobressaem as
tias baianas, que, além de
sobreviverem através dos
quitutes de seus tabuleiros,
funcionavam como elementos de
agregação da raça, chefiando
famílias unidas, muitas vezes,
apenas pela cor da pele,
fundando terreiros de candomblé
e naturalmente, dançando e
cantando. E assim apesar da
repressão crônica e sistemática
das autoridades que organizavam
batidas policiais nos terreiros
ou dispersavam os grupos de
negros que se concentravam em
praças, vendendo seus produtos,
dançando
o lundu, a umbigada e promovendo
batuques. o ritmo foi em frente.
Ajudado,
ironicamente, pela própria
pressão que, ao deslocar as
manifestações religiosas dos
negros para a época específica
do carnaval, criou o próprio.
Aparecem
então os cordões e clubes
liderados por negros, mulatos e
mestiços, e surge o samba
baiano. Samba de roda, de
partido, no qual o coro canta
refrões e os solistas respondem
de improviso. Como talvez por
influência dos coronéis
nordestinos, aqui, aliás, é bom
registrar a opinião de alguns
pesquisadores para quem o samba
teria nascido com os índios do
Nordeste, especialmente na tribo
Cariri. Citam como prova uma
cerimônia na qual os índios
"dançavam, bebiam cachaça,
comiam cagado" que, em seu
idioma, se chamaria samba. Mas,
para a grande maioria dos
historiadores, a origem da
palavra viria da umbigada, que
evoca tanto a sensualidade do
amor, quanto a mãe África, de
cordão umbilical a força
cortado. E no dialeto de Luanda,
umbigo é samba.
Discussões
à parte, a verdade é que os
negros foram responsáveis, no
mínimo, pela evolução e
disseminação do ritmo,
insistindo na música, na sua
dança, resistindo a perseguição
policial e a estigmação da
sociedade. Defendendo, assim, a
própria raça com uma arma nada
ortodoxa: "a alegria".
Alegria que
serve de parâmetro para
demonstrar que a música baiana
tem grande influência nos
costumes e na musicalidade
nacional, haja visto que todos
seus ritmos e rituais são
aceitos de uma maneira quase
unânime por todas camadas
sociais do país.
Começa com
o samba, que saiu da Bahia para
tomar corpo no Rio de Janeiro,
depois em São Paulo e outros
Estados, na Bossa Nova de João
Gilberto, os Doces Bárbaros
(Gil, Caetano, Bethania e Gal),
os Novos Baianos. A Lambada que
se tornou preferência nacional.
Os Blocos de Afoxé (Filhos de
Ghandi, Yle-Ayê, Olodum), o
carnaval baiano com seus trios
elétricos na Praça Castro Alves,
e mais recentemente a Timbalada.
Todos esses
personagens sintetizam a
essência da mais pura alegria
desse povo negro e seus
descendentes, pois tem
ingredientes muito importantes,
com a inspiração, improvisação,
malícia e, naturalmente poesia.
Mas,
lembrando a poesia, impossível
de esquecer Noel Rosa que entre
tantos sambas maravilhosos,
escreveria:
"... E quem
suportar uma paixão
Sentirá que
o samba então
Nasce do
coração...".