1 -
QUESTÕES ESSENCIAIS
A sociedade
branca não era viável para o escravo e o índio. Não havia lugar para
eles em tal organização social, de modo que a sua única alternativa de
sobrevivência era a organização tribal de suas comunidades originárias,
uma tradição transmitida ao longo de gerações cativas que
simultaneamente absorviam o conhecimento técnico do branco no exercício
de suas tristes ocupações.
A história
da mão brasileira é a história de nossas nações negras, e desconhecê-las
é não saber quem somos e nem onde estamos, realmente.
Quem não tem
história não tem rosto, quem não tem rosto não sabe quem é, não tem
destino, nem lugar.
O Quilombo é
o modo autenticamente brasileiro de enfrentar organizadamente um cenário
social hostil. É um contexto social alternativo, o sinal de uma
surpreendente vocação popular brasileira para a democracia.
Do nosso
ponto de vista, os Quilombos constituíram e constituem um dos fatos
sociais mais importantes na formação da sociedade brasileira. Porque o
espírito quilombola, o modo quilombista de ser, de sobreviver e de
viver, subsiste no povo brasileiro, com muita força e sob vários
aspectos.
O mais
importante deles é o aspecto físico: milhões de afro-brasileiros,
afro-índios e até brancos, são descendentes próximos ou longínquos de
antigos habitantes dos quilombos.
Oprimido e
negado, de fato e de direito, o nosso povo sempre recorreu ao sistema de
quilombo para garantir a subsistência material e a sobrevivência
espiritual, cultural e racial, impondo métodos, tradições e
conhecimentos ancestrais ou mestiços, recriados para resistir à
escravidão e a servidão direta no passado; e à exploração e opressão de
hoje.
Grandes
movimentos sociais e políticos nativistas, nacionalistas e
sociais-progressistas de diversas nuances foram realizadas por
Quilombos, a partir de Quilombos ou dentro do espírito dos Quilombos.
Todas as
densas ações espirituais e artísticas, autenticamente brasileiras, desde
1.500 até nossos dias, tanto populares como eruditas, afloram das mais
variadas formas nos mais variados pontos, em todos os momentos, em
variedades de grupos de nossa gente. Sistema de resistência de criação e
de nacionalização.
Ação
integradora, sincretizadora, sintetizadora, renovação com continuidade
orgânica e vital, os Quilombos foram centros de retomada de conservação
e de irradiação de culturas ancestrais, mudando-lhes, muitas vezes, as
formas, porém, conservando-lhes e desenvolvendo-lhes o conteúdo,
adaptando-o a novas circunstâncias e aos novos conhecimentos e recursos
na medida exata em que as pessoas que os compunham adaptavam-se ao meio
imediato em que passavam a viver em liberdade e a interagir com este e
entre si.
No mais,
trezentos anos depois da destruição oficial de N'Angola Janga (Nova
Angola ou Pequena Angola), conhecida como Palmares e da morte de N'Ganga
N'Zumbi (Zumbi) seu último governante supremo e líder mais conhecido.
2 - O QUE
MOSTRAREMOS
Em geral,
quando se pensa em Quilombos, pensa-se em meia dúzia de pessoas negras,
amedrontadas, escondidas em matos e capoeiras, fugindo do cativeiro de
mãos vazias e completamente vulneráveis, ignorantes e desprovidas de
quaisquer recursos.
É certo que
uma grande quantidade de Quilombos iniciou-se assim, com meia dúzia de
pessoas, mas esta imagem não condiz com a realidade dos Quilombos como
fato e fenômeno global.
Em primeiro
lugar, porque aquelas pessoas não eram ignorantes. Embora condenadas ao
trabalho forçado, elas eram a mão-de-obra especializada de sua época,
motor da economia, além de serem profundas conhecedoras da natureza,
estando, portanto capacitadas a extrair do meio onde se encontrassem
pelo menos os recursos mínimos das quais necessitassem.
Em segundo
lugar, porque as fugas de escravos para a formação de Quilombos, não se
deram apenas nos locais e nas épocas em que os senhores se encontravam
no apogeu de seu poder.
Períodos de
guerras, de epidemias, de crises econômicas, de divisões na oligarquia
dominante, propiciaram oportunidades a que, às vezes, grandes massas de
pessoas escravizadas pura e simplesmente se retirassem das áreas de
controle dos senhores.
Existiram,
também, as situações em que estes mesmo senhores levados pelos motivos
expostos acima, retiravam às pressas, deixando para trás os escravos se
revoltavam e se recusavam a partir, conquistando assim, a Liberdade.
Temos que
ter presente que a escravidão direta no Brasil durou quase quatro
séculos, durante os quais foi sendo estabelecido a sociedade brasileira,
cuja composição foi mudando durante todo este tempo variando de lugar
para lugar, fazendo com que variassem também, as condições, o tipo e as
capacitações dos escravos que quando fugiam, formavam Quilombos que
refletiam também estas transformações.
A capacidade
de adaptar-se ao meio e adaptá-lo, ora recuando para formas mais simples
de vida, ora lançando-se a formas mais avançadas do que as que tinham na
condição de escravidão e, quase sempre, combinando formas simples e
avançadas, devido às condições de liberdade e as exigências de defesa e
sobrevivência, como dizíamos, este grande maleabilidade, de partir
sempre das raízes, mudar as formas e voltar às raízes, sem nunca romper
com estas, constitui a alma, o cerne do espírito quilombista, que
permitiu, durante toda a nossa história, a criação de enormes
quantidades de quilombos, tão variados em seu modo, mas tão iguais em
seu conteúdo e objetivos.
Consta que o
primeiro contingente de escravos trazidos para o Brasil fugiu logo na
chegada, indo morar com os índios. Vemos assim que o primeiro passo da
colonização portuguesa trouxe também, o primeiro passo da rebelião negra
e do espírito quilombista.
Daí em
diante, este movimento de ação e reação nunca cessou.
Mesmo os
pequenos Quilombos variavam muito, pois, havia aqueles em que poucas
famílias viviam de maneira bastante primitiva, ou mais atualizada.
Viviam da
cata, da caça, da pesca, do plantio, da criação, de produção para a
troca com povoados "brancos" distantes, mineravam ouro e pedras
preciosas, que vendiam a contrabandistas, faziam ataques às áreas
"brancas" ou assaltavam viajantes e tropeiros, praticando a pilhagem
como guerrilhas de sobrevivência; em busca de meios de manutenção,
armas, libertar outros escravos, vingar-se dos senhores, resgatar
mulheres negras escravas para com elas casarem, porque como os
escravagistas traziam da África uma massa maior de homens do que de
mulheres, naturalmente era maior o número de escravos do sexo masculino
que fugiam e iniciavam os Quilombos.
Aí, começa
um fato importantíssimo na formação do Brasil, porque assim como entre
os negros havia uma maioria esmagadora de homens formando os Quilombos
entre os sobreviventes dos índios, acossados fugindo dos predadores e
exterminadores, havia uma maioria de mulheres. No entrosamento entre os
dois setores, o casamento de mulheres índias com homens negros foi o
início sólido do surgimento do "Cafuzo", mestiço do negro com índio, a
mistura entre as vertentes culturais negro africana e indiamericanas,
tão iguais em sua essência e tão diversificadas em suas manifestações
particulares.
Grandes ou
pequenos os Quilombos estruturavam-se a partir das relações familiares e
de laços de parentesco mais amplo, afinidades, necessidade de apoio
mútuo, sólidas amizades, respeito aos mais velhos e mais experientes,
liderança baseada na capacidade prática para os devidos tipos de
atividades, ressaltando entre estas as práticas para os devidos tipos de
atividades, ressaltando entre estas as práticas religiosas de caráter
tradicional, mágicas, pois, quase sempre os quilombistas guiavam-se
basicamente pelas entidades afro-índias, que entre outras coisas,
davam-lhes as diretivas fundamentais e ensinavam-lhes as técnicas
produtivas, curativas e defensivas.
Conforme a
época, o lugar, as pessoas envolvidas e a correlação de força entre
senhores e escravos, houve Quilombos em regiões distantes dos centros de
poder branco, outros mais próximos ou até dentro das próprias cidades
"brancas".
Tudo isto
fez com que, no tempo de sua existência os Quilombos tivessem fora de
seus domínios a imagem de serem lugares misteriosos, maravilhosos e
divinos para a população que continuava escrava ou oprimida pela
oligarquia "branca". Horripilante e demoníaca para aquela oligarquia e
para que os que eram dominados espiritualmente por ela.
Por viverem
tão mergulhados na natureza e em tão estreita relação com as forças
sobrenaturais, de maneira tão bem sucedida, os quilombos eram imaginados
como seres fantásticos, sobre humanos, meio diabólicos ou meio
celestiais.
Estas
imagens, às vezes favoreciam e às vezes prejudicavam aos quilombos e aos
quilombolas pois por um lado, geravam amor, apoio, respeito e temor, mas
por outro lado, geravam medo, pânico, ódio e desejo de destruí-los a
qualquer custo.
Isto sem
contarmos as favelas, mocambos e alagados, que sempre têm muito de
Quilombos e, volta e meia, aqui e ali, insurgem-se e consolidam códigos
e modos de viver próprios.
É que
infelizmente, para a maioria pobre do nosso povo, principalmente para os
negros, mestiços e índios, a simples abolição da escravidão direta não
mudou as relações sociais de forma necessária e satisfatória,
obrigando-os a procurar formas próprias de se defender e sobreviver.
A sociedade
brasileira foi criada por um grupo reduzido de indivíduos poderosos
única e exclusivamente para lhes dar lucros. A nossa elite surge para
servir a uma implacável orientação colonialista. Ela é a voz e o braço
de uma metrópole que manipula os destinos do tecido social segundo suas
necessidades. Nossa terra é, "zona de influência" de seu poder. Uma
nação nasce do acordo entre indivíduos livres que unem suas forças para,
juntos criarem instituições que lhes facultem progredir e realizar seus
sonhos e garantir o futuro de seus descendentes. Nossos senhores não
foram líderes, mas capatazes. Milhões de nós trazem consigo o sangue, os
traços e o modo de ser de pessoas capturadas, trazidas para cá e, ao
longo de quatrocentos anos exploradas e tratadas como seres sub-humanos
enquanto que da dor de seu sacrifício anônimo nações inconscientes e
remotas se enriqueceram (foi com o ouro de Minas Gerais que a Inglaterra
financiou sua Revolução Industrial e mudou o destino do mundo).
O brasileiro
nascer servo, não cidadão.
A única
forma de organização e proteção que o escravo, o não-cidadão (a qualquer
um que não fosse da elite oligárquica era um não-cidadão) pôde
desenvolver para assumir o pleno direito ao exercício de sua dignidade
humana foi o Quilombo. Negros, brancos e índios têm na história de suas
famílias antepassados que escaparam ao cativeiro e passaram a viver e
trabalhar em comunidades solidárias em terra-de-ninguém. Era a coisa
óbvia a ser feita. O país era grande e pouco povoado, e ocupá-lo exigia
justamente os conhecimentos técnicos detidos pela população escrava. Uma
certa coragem e determinação também eram necessárias e a justa revolta
com uma sujeição estúpida cedo ou tarde calavam mais fundo que o medo do
desconhecido.
Os
fugitivos, atingindo um lugar propício, passavam a trabalhar não pelos
benefícios de um cortesão explorador, mas por sua dignidade comum, por
uma possibilidade de futuro para si e para os seus.
A nação
brasileira surge com o Quilombo.
Porque a
vocação natural do ser humano para a cidadania (a elaboração racial de
seu poderoso instinto gregário para fortalecê-lo) expressa-se
historicamente, no Brasil, pela criação dos Quilombos.
A nação
brasileira foi criada por seus escravos.
Milhares de
cidades brasileiras surgiram assim, pois houve inúmeros Quilombos,
médios, pequenos e grandes. Muitos deles prosperaram e foram tomados de
seus fundadores pelo apaniguados do poder central. A liberdade e o
progresso tão duramente conquistados foram novamente roubadas de seus
detentores de direito pelas forças da opressão, e quantos direitos
sociais não estão nos tirando, neste momento, em nome de uma pretensa
modernidade que só beneficia, aqui e lá fora, a uma minoria? Há poucos,
lá em cima e sempre os mesmos. Nossa luta, também, não mudou. Muda o
cenário, muda a conversa. Só os tempos, parece, quase não mudarem.
Mas os
escravos, agora, são outros. Não pensam, não sentem, são mudos. Os
poderosos não precisam de braços, tem tenazes. Não precisam de pés, têm
rodas. A sede de liberdade e respeito de seus sevos não lhes ameaça mais
o sono. Cada vez mais mãos e talentos não encontram ocupação e legiões
crescentes de pessoas se esgueiram pelas ruas de cidades que já foram as
suas cidades e hoje são apenas o cenário indiferente de sua degradação.
O que se
fará de tantos esquecidos?
Haverá lugar
para a solidariedade comunitária no sôfrego individualismo
contemporâneo? Será que o nosso luxo não fez de nós seres ainda mais
bárbaros do que os nossos ancestrais?
Eles
fundaram nações. E nós? O que estamos destruindo para criar?
Uma coisa é
certa: se não sentimos como naturalmente nossas dignidade e a liberdade
(e não é genuinamente livre que olha com pavor para o futuro), então a
escravidão está de volta às nossas vidas.
3 - A
FORÇA DOS ORIXÁS, EM AUXÍLIO AOS QUILOMBOS
Oxum e
Yemanjá, forças que predominam nas águas.
Ogum, força
criadora de caminhos, de transformação pelo trabalho e de imposição pela
guerra.
Oxumarê,
princípio da esperteza, conhecimento do que está oculto e do impulso da
união dos contrários para a reprodução.
Omulú e
Obaluayê, força da cura, da renovação do interior dos corpos e da
destruição.
Oxalá, poder
supremo, primeira e principal vibração essencial de Olorum: O todo
Universal, infinito, imenso e eterno.
Exú, a
manifestação particularizada, de cada um dos Orixás, Espíritos
ancestrais das diversas espécies animais e vegetais.
Estas forças
espirituais, em suas versões africanas, índias ou mescladas com uma dose
de catolicismo popular, eram conhecidas e cultivadas pelos quilombolas,
o que fazia, como já vimos, que chegassem a serem confundidas com elas.
Por exemplo,
no nordeste, desde séculos antes de as estórias de Zoombies antilhanos
chegaram ao Brasil, através da imprensa, do cinema e da televisão, muita
gente acreditava, como muitos acreditam até agora, que Zumbi era um
fantasma, uma espécie de alma penada muito poderosa, generosa e
vingativa, que habita as matas.
"Barbado",
"Pai do Mato", "Caipora", "Saci Pererê", "Caboclos D'Água e tantas
outras formas de manifestação das forças espirituais, eram vistas como
sendo formas assumidas pelos quilombolas enquanto vivos ou por seus
espíritos depois de mortos.
É verdade
que muitos deles eram versados nas artes mágicas, podendo "envultar-se",
teleportar-se, ter os corpos fechados, ver além do tempo e do espaço
presente, etc.
Mas as
massas de habitantes dos quilombos eram pessoas comuns de seu tempo e de
seu meio, contidas na ação dura e continuidade de trabalho produtivo
metódico e criativo, engrandecidos pela liberdade de poder dispor de si
mesmas, amadurecidas pela responsabilidades que isto acarretava.
Ao fugirem
para formar os Quilombos e depois ao viverem neles, as pessoas não eram
movidas por ideais de liberdade mais ou menos abstratos. Eram movidas
pelo desejo de sobrevivência física, mental, espiritual, podendo
pertencer a si própria, ter suas famílias, viver a seu modo e praticar
suas crenças.
Por isso não
eram tão práticas, tão criativas, tão obstinadas, tão espertas, tão
valentes e tão fortes.
A todas elas
prestamos aqui a nossa homenagem, reverenciando as suas vidas e as suas
ações, preciosas e heróicas, conscientes de sermos, em grande medida,
conseqüência de suas existências e parte de sua herança.
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