
PONTO DE PARTIDA:
Há pelo menos 15 séculos a.C. eles já estavam por lá. Continuaram por lá; com modificações socioculturais e muitas lutas territoriais no decorrer da existência civilizatória. Existência, esta, referida vulgarmente pelos europeus como “povos primitivos”.
Os primevos viventes entre as ilhas da região conhecida hoje como Arquipélago de Marajó entrou em declínio pouco antes da chegada dos europeus. A população dos ilhéus que antes fora de 100.000 habitantes se esparramou pela bacia amazônica e parte interior.
Embora, ganhassem a referência de bárbaros como o mito grego das amazonas, assim como todos os indígenas do norte do território recém-descoberto, esse povo manteve a sua cultura pré-colombiana intocada apesar de séculos de invasão. Foram reconhecidos como um grupo indígena que se manteve coeso, principalmente pelas questões dos rituais religiosos e suas crenças ao decorrer de milênios.
Uma população estruturada com estratificação social dada ao poder produtivo e de troca; são informações dadas pelas urnas funerárias e artefatos de barros encontrados com memórias descritivas de períodos da Era Pré-colombiana. Um período em que à mulher era reservado o saber e o poder de dominar a sociedade através de sua força geradora.
É daqui que construiremos o nosso carnaval; do universo místico com as crendices do povo da floresta ao encontro de raças de além-mar que formaram quilombos, construíram, viveram e vivem a crença cabocla que ainda permeia a “Ilha de Marajó”.
Um recorte artístico com liberdade poética tomará o desfile da Combinados de Sapopemba para o carnaval 2026.
Boa leitura!
SINOPSE:
A pele vermelha como o barro, ali nasceu. O pajé convoca a tribo e dança ao cair da noite! E preciso um ritual de fé aos deuses, pois, na mata, tem mistérios que não se consegue explicar. Em canto e dança, o muiraquitã (1) na forma de sapo guardião se resplandece e a luz traz a coragem e afasta o medo e a escuridão. Os maus espíritos não podem lhes vencer e; dessa batalha, a tribo sai vitoriosa ata a luz de um novo dia, pendurada na crença protetiva de seu amuleto. Ainda, a tribo evoca através do rouquejar do Cururu ao Marajó (2), a vinda de Patu-Anú (3), cuja amplitude de suas asas emana a luz das águas para vencer a treva. Assim, se fazem entender que os Caruanas (4) são energias viventes de Auí (5), colocados a margem do Mibaraió (6), após o Girador (7) -- pote de barro -- surgir das profundezas do mar num redemoinho e vir parar nas mãos de Auí e abri-lo, derrubando todas as vidas da fauna e flora sobre a Terra, oferecendo alimento para vida e para a alma, matando ou curando. Traz consigo a dualidade da existência, como as águas que envolvem o arquipélago. Um enorme banzeiro (8) surge dos beijos e abraços das águas -- rios e mar -- formando a pororoca. Quando as águas bailam ninguém se atreve a atrapalhar; pode ser sugado às profundezas pela Mãe D’Água (9) e levados pelo Pirarucu ou, se longe delas, em terra firme, capturados pelos espíritos da mata. Uma situação sem solução que somente o cosmos ou proteção divina poderia ajudar ao morador do Mibaraió.
Do meio da floresta, pode vir a Caipora (10) querendo impedir que os moradores possam lhe roubar os frutos que a Mãe Natureza oferece. Se tiver a sorte de escapar da guardiã das matas, com certeza, do Mapinguari (11) de um olho na testa e boca na barriga não escapara. Se voltar à beira da praia, nem as mais sábias mulheres podem escapar do sedutor e vingativo Boto (12) ou, senão, da iminente aparição da Boiúna (13) que emergira das profundezas das águas e, levar até mesmo o mais forte dos guerreiros. A população ribeirinha vive o medo e esculpe as carrancas a beira d’água para seguir a vida e garantir o sustento com a pesca. Com muita fé, tocam os tambores para evocar a proteção das almas que habitam os cosmos. Este costume não cabe somente aos povos origina rios! A pele escura que não nasceu ali, chegou, se estabeleceu e reconheceu a fé. Também afirmam que naquele novo mundo tem magia que não se explica, assim como na Terra Mãe de além-mar (14). Assim, como as peles vermelhas, as peles escuras evocam a fé nos tambores resgatando a magia de além vida, incorporando entidades para a cura e proteção. O indígena aprendeu com o africano e o africano aprendeu com o indígena. Os batuques de Babaçuê (15), de Dona Maria Bárbara Soeira invocam todas as falanges: quimbundas e ajuremadas (16) dão a força e a fé para superar os desafios e riscos de vida. A procissão carnavalesca singra nas águas do tempo. Traz no rouquejar do Cururu uma nova mata. A da fé miscigenada. De um povo que se uniu e deu origem ao novo povo das matas: os caribocas ou caboclos, de corpos malemolentes e sensuais a dançar e cantar com seus tambores no carimbó.
A cultura de respeito ao saber e experiência dos mais velhos. A mudança ritualística de fé mudou, mas, não findou. O feitiço, por alguns séculos se tornou caboclo nas águas e matas de Marajó. Invés das danças tribais, o tambor evoca a magia. A mão negra que em Marajó plantou, ganhou outras vozes e matizes: as Iyas (Iyalorixas) e os Babas (Babalorixas) a evocar nos terreiros e nas roças os espíritos ancestrais para proteção e cura. No pescoço, não há somente o muiraquitã. Tem mandiga e patuá. Caboclos, Boiadeiros e Pajés retornam ao mundo dos vivos pelas rodas de Babaçue. Nos terreiros, defumadores queimam as ervas para abrir os caminhos. As fumaças anunciam ao Cururu que a pajelança e macumba começaram. Vem unidos para a proteção das almas e afastam o maligno de todos os seres viventes. O Cururu, após se incensar, pode mergulhar nas águas de Marajó e voltar aos cosmos, sabendo que aqueles que protegem ao seu povo não dormem e nem nunca dormirão; pois os rituais podem mudar, mas a fé e a chama da pemba no terreiro jamais há de se apagar.
GLOSSÁRIO
(1) Muiraquitãs ou muyrakytãs são artefatos talhados em pedra, chamada de amazonita, representando animais. O mais comum são as rãs, aqui transportado numa liberdade poética para o símbolo da agremiação: um sapo.
(2) Marajó significa vento que sopra, ao cair da tarde. Os uivos dos ventos ao chegar da noite eram descritos com a chegada de figuras desconhecidas cheias de mau-agouros.
(3) "O bom espírito das Águas" em Tupi Guarani. Trata-se de uma entidade mística, na forma de um pássaro mágico que atravessa e dissipa as Trevas, trazendo Luz e progresso por onde passa. Está ligado aos mitos dos Caruanas.
(4) Os caruanas são energias viventes sob as águas, conforme a concepção da encantaria cultuada pelos índios marajoaras. Quando as pessoas se encantam, suas energias humanas são levadas para o Patuanu (ou Patu-Anú). Lá passam por vários estágios como flor, peixe, ave etc. Durante esse processo perdem suas energias como viventes e estas se fundem com as energias já existentes sob as águas do mar e que agora podem ser invocadas pelo pajé. A partir daí passam a se chamar caruanas.
(5) Auí, um ser altivo e luminoso, e seu povo, para o qual construiu Sete Cidades Encantadas sobre as águas. Eles viviam em harmonia com a natureza, até que um dia Auí transgrediu uma regra ditada pelo Girador, que não deveria se aproximar de lugares com desequilíbrios naturais. Auí avistou um redemoinho nas águas, provocado por Anhangá, tido como o “resto da natureza”, e ao olhar com mais atenção percebeu que o fundo das águas era feito do mesmo material que o Girador, o barro. Mergulhou em direção ao centro das águas e isso provocou um desequilíbrio na ordem natural. O que estava em cima foi para o fundo das águas, e o que estava embaixo emergiu à superfície.
(6) A palavra Marajó em si é oriunda do termo Mibaraió, que significa “anteparo do mar”, fazendo referência à localização do arquipélago. Em tupi também significa limite das águas; que pode ser destinada tanto ao estuário do rio quanto do mar.
(7) Girador, a divindade primeva que possui a forma de uma grande igaçaba ou pote. Sobre águas primordiais pairou o Girador, do qual surgiu Auí.
(8) Banzeiro significa levemente agitado. Como o movimento das águas, as borbulhas do rio ou do mar. Falando do mar: “mar banzeiro”.
(9) Mãe D’Água: Aiuara ou Iara, uma entidade metade mulher e metade peixe que atrai as pessoas para o fundo do mar. Similar a Sereia.
(10) Caipora: entidade mitológica brasileira; Protege os animais e a floresta. Os indígenas acreditavam que estas entidades temiam a luz e, por isso, andavam com tições acesos no decorrer da noite. Essa figura mítica, foi descrita na cultura como sendo canibal e, que, se alimenta dos caçadores.
(11) Mapinguari: conta que a criatura era um pajé que descobriu o segredo da imortalidade, e seu castigo foi se transformar num animal horrível e fedorento. A criatura possui apenas um olho, e que sua boca é rasgada do nariz até o estômago. Se não bastasse a figura tenebrosa que já se formou, há ainda quem diga que seu grito é estrondoso. Suas mãos possuem longas garras, capazes de causar grandes danos.
(12) Boto ou Boto Cor-de-rosa: figura do folclore brasileiro que, segundo Câmara Cascudo, comparado ao mito grego de relações sexuais com golfinhos, remete a uma trama social de abandono de mulheres grávidas, de abuso contra as virgens e até mesmo de relação sexual não consentida com homens belos, colocando os mesmos em posição frágil na sociedade patriarcal cujo sofrimento remonta até mesmo ao suicídio.
(13) A boiuna, Mboi-Una (ou cobra negra, ou cobra-grande) é um mito amazônico de origem ameríndia. É descrita como uma enorme cobra escura capaz de virar as embarcações. Também pode imitar as formas das embarcações e atrair os náufragos para o fundo do rio ou assumir a forma de uma mulher.
(14) (15) (16) Terra Mãe, de além-mar, de natureza poética do autor para se referir ao continente africano, cujos filhos foram sequestrados se “seu ventre”. Babaçuê: variação de cultos religiosos que se tornou uma espécie de culto afrobrasileiro muito nacionalizado, cuja teogonia e rituais seguem o modelo jeje nagô, com simplificações e adaptações marcadas por influência da pajelança amazônica, do catimbó nordestino, do candomblé de caboclo e da umbanda carioca. Quimbundo: da prática religiosa dos nigerianos, vindo com os mesmos em que os espíritos chamados de "voduns", chego ao brasil com os negros e seu tambor de mina, ritual afro religioso; e, ajuremados, de variação da Jurema, religião indígena do nordeste norte com ênfase na pajelança e manifestações das entidades das matas.
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