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::.. SINOPSE DO ENREDO ..::
G.R.E.S. MOCIDADE UNIDA DA MOOCA - CARNAVAL 2020
Enredo: A Ópera negra de Abdias Nascimento

O Grêmio Recreativo
Autores: André Rodrigues e Willian Tadeu

Prólogo


Clamo a Olorum que derrame toda luz do firmamento na direção da viagem cósmica que hoje conduz minh’alma e com seu sopro refaça das cinzas da memória minha voz. Retomo a fala que não teve ponto final, revivo a batalha que nunca cessou.
Torno à rua neste mundo entre povos, gritos e protestos, entre corações pulsantes de um país que sangra; Sangue retinto de nossa gente, hemorragia incontida nas feridas abertas há 500 e tantos anos.
Foi neste simples palco de sonhos, onde postes ofuscavam o lume das estrelas e brindes rompiam a quietude da noite, que meu olhar negro se lançou a outros palcos. Na negra noite das velhas ruas onde dormem os humildes, pisando os paralelepípedos enfileirados pelo negro suor, nas guias negras de Exu e Ogum, que um negro delírio irrompeu em minha mente. Às alvas luzes, aos palcos de marfim, aos palacetes brancos, a pele escura!
Aqui floresceremos como orquídeas e daqui brotaremos no mundo todo!


Ato I – Sonho


Se toda praça é do povo, o teatro também deve ser. A arte une o onírico ao real, liberta a mente das amarras, incomoda o opressor que nas Casas Grandes de nossos dias ainda julga ser capaz de sufocar o pensamento. O artista é um provocador. Para as ideias, não há grilhões.
Eu quis falar para o povo. Religiosamente, culturalmente, politicamente. Do povo, para o povo, pelo povo. Muitas vozes se uniram à minha e fizeram do palco o palanque do sonho, o espaço da consciência, o ato da libertação.
Não havia negros em África. Foi o europeu quem deu a tantos povos diferentes a distinção da cor, o estigma que tornou a melanina roteirista de nossos destinos, escritora de nossos dramas. Da negra pele que nos une em irmandade, fizemos orgulho. Rompemos tabus.
Sonhamos com palcos, com o poder de falar. Tingimos de negro o maior totem do ideal europeu de civilização, entre as calçadas que nossos ancestrais construíram. Emolduraram-nos as imponentes volutas que jamais puderam tocar, iluminaram-nos os lustres que os legaram ao breu. Palcos que não foram seus, aplausos que a labuta não lhes rendeu. Talentos na ribalta, orgulho na platéia, emoção nos camarotes. Nas páginas brancas da história do Theatro Municipal, a tinta negra de nossa história.
Bendita seja a melanina que desenhou cena tão bela!


Ato II – Ficção

O corpo em cena dá vida a narrativas sonhadas, faz parecerem reais histórias imaginadas. Em gestos e expressões, falas e movimentos, lágrimas e risos, nosso sonho foi à ficção dos palcos e refletiu no espelho da negra realidade. Os rostos marcados pelos traços da vida se redesenhavam. Imperadores! Sim, eram rostos de imperadores nas luzes da ribalta!
“E, de repente, eram 1, eram 10, eram milhares” sob as asas vermelhas da liberdade de expressão. Vivemos o sortilégio, mistério negro de quem busca construir uma identidade sem o tutorado que negava nossa verdade. Reescrevemos a ópera de nossas vidas encenada nos palcos do mundo. Fomos moleques sonhadores, conscientes de que todo filho de Deus tem asas.
Peles pretas vivendo nossas histórias. Da transcendental e mística Aruanda ao delírio que fez do grego Orfeu a mitologia negra de nossos morros, metáfora dos filhos pródigos de nossa raiz. No abraço da mater África Brasilis, o colo da ancestralidade. Das favelas, a realidade de uma abolição que nunca veio. Naqueles negros corações, a esperança de soprar para longe as densas nuvens que cobriam o sol da liberdade. O Teatro Experimental do Negro foi nosso Palmares.

Ato III – Realidade

A arte reluzente nos palcos catapultou nossos ideais à ruptura de outros limites. Vozes empostadas e mentes firmes. Conquistamos lugar nos palanques da sociedade. Meus irmãos quilombolas me proclamaram Zumbi da contemporaneidade. Honraria maior que qualquer galardão foi unir e representar tantos sonhadores, guerreiros talentosos na arte da vida que deram a mim um definitivo papel.
Nosso quilombo foi às ruas, aos debates. O verbo se fez arcabuz feroz contra ideias retrógradas. Às vozes negras não mais bastava a fala, era necessário poder. Poder! Verbo e substantivo, o duplo que conduz nosso mundo de desigualdades, da simples faculdade de ser à força de ação e decisão.
Num mundo de injustiças, meu pai Xangô guiou minha caminhada. Deu a mim a força de seu machado justiceiro. Fui seu leão de batalha. Não falei apenas por mim. Meu corpo físico incorporou milhares, do passado e do então presente. Pensamos juntos, falamos juntos, lutamos juntos. Exercemos a força de nosso poder. Acorrentamos o racismo. Nas leis que um dia nos destinaram ao açoite, escrevemos os direitos da cor da noite.

Ato IV – Resistência

Sinto a chama de nosso quilombo cada vez mais viva. A cada camburão que é feito de navio negreiro, novos malês se erguem. A cada tiro lançado pelos fuzis da discriminação contra nossa juventude, búzios revoltosos se levantam pelos recônditos deste território pouco gentil.
E é por isso que convoco toda a armada negra que ainda resiste. Eu chamo os maracatus. Conclamo os candomblés, jongos, blocos e afoxés. Chamo à linha de frente todo batuque que atinge como flecha o coração amargurado do racismo. Invoco a luz de todos os orixás, apelo aos caboclos, recorros aos pretos velhos e suas mandingas. Invoco a força do trabalhador, dos marginalizados, subalternos e escorraçados. Um cortejo que passa e arranca a mordaça ante a fúria do opressor.
Vocês são a resistência! O tom épico da minha ópera, o aplauso da minha consciência. Que o passado ilumine o futuro e o futuro dê luz ao passado! Levantem, lutem, conquistem os palcos da vida!


Epílogo

Minha voz cansa, mas não perde a esperança. Não há despedidas para quem estará sempre presente. Eu vivo através de vocês. Sou o ideal de Palmares que pulsa em cada coração negro. Sou o palco como metáfora de uma sociedade. O papel de destaque ao alcance de todos. A consciência da distinção como arma contra os preconceitos, triste plural que venceremos a cada dia.
Para lembrar de mim, não olhe para o céu em busca de uma estrela como em contos pueris. Contemple a negritude infinita do manto da noite e sinta a nossa grandeza. Se quiser saber quem sou, procure nos barracos furados pelas balas da intolerância, nos filhos de famílias metralhadas pelo racismo, nos negligenciados pela ignorância. Ao sentir viva a resistência, ao testemunhar a ascensão de mais um quilombola contemporâneo, encontrará ali mais um Abdias, do Nascimento de um novo Brasil.


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