Nas ruas de
terra ou no fundo dos parques: você pode ver as crianças brincando.
Chega mais perto que você vai acabar lembrando que brincou daquelas
brincadeiras também! era pedrinha, cabra-cega, amarelinha, jogo da
velha, mão na mula e aquelas antigas cantigas de roda. Se prestar bem
atenção, também vai perceber que elas não sabem quem inventou aquelas
brincadeiras e músicas, como você também não sabia; e que na verdade,
nem querem saber. Agarrados às suas bonecas e carrinhos de madeira
rústica, estão mais interessados em correr livres e sorrir bastante.
E todos
sabem que sorriso de criança é uma benção.
Mas elas
também choram, porque tem medo do "homem do saco", do "bicho papão", da
"cuca" e de outros tantos monstros que a gente inventa para meter-lhes
medo.
E se você
souber uma história e quiser contar, elas irão sentar-se em sua volta
satisfeitas e acreditarão em tudo que disser: porque nossas crianças são
tudo aquilo que dissemos à elas e que acreditam que são. Por isso quando
crescem, seguem aquilo que viram ou ouviram enquanto cresciam; e, da
mesma forma, ensinarão aos seus filhos. Isso chama-se tradição.
Foram tantas
as culturas se misturando ao longo dos tempos que não conseguimos mais
saber de que continente vieram e de qual cultura. Não sabemos se vieram
da África, com os negros; da Europa com os imigrantes e colonizadores ou
se daqui mesmo, dos índios. Um tanto de uma cultura; outro detalhe de
outra.
Pois a
cultura também miscigenou. Primeiro é a medicina popular, que entra em
nossa vida a todo instante e aparece muito cedo nas nossas febres de
criança, no "mal olhado" e no "bucho virado" que a mãe-de-santo nos
terreiros de umbanda, pedindo ajuda aos orixás, cura e benze com arruda
de guiné. Se é verme, tem raiz pro bicho se assustar e fugir. Se é
fraqueza, tem a garrafada de ovo de pata, mentruz e vinho. E quando o
mal é na pele, basta um banho de raiz que a dor passa e afasta a coisa
ruim.
Mas se você
aprendeu que não presta cruzar com gato preto ou sair na sexta-feira dia
13, melhor não arriscar.
O mundo
mudou como tem que mudar, mas a gente ainda acredita no que quer
acreditar.
Se me pesa o
medo da mandinga eu carrego um patuá. Pra proteger e trazer sorte. Para
começar o meu dia, levanto com o pé direito e dou três pulinhos; depois
coloco um galho de arruda na orelha direita, e sossego. Não me arrisco
passar embaixo de escada; nem esqueço de cuidar da "comigo ninguém
pode". Depois troco a água das espadas de São Jorge, que é guerreiro e
protetor, e estão sempre combatendo seu dragão cuspidor de fogo.
Mas antes de
sair de casa, penduro na porta uma ferradura, para guardar o lar. E não
esqueço de juntar no meu chaveiro, um pé-de-coelho e um trevo de quatro
folhas. Que assim, eu sei, vou estar protegido e com muita sorte.
Se estou com
fome já vou chegando e me servindo; é arroz doce, é angu, sarapatel,
buchada, cural, rabanada, acarajé, mandioca e mugunzá. Que é comida boa
e diferente; as vezes forte e apimentada, as vezes doce e outras vezes
salgadas. Sempre passo no centro de umbanda pra cumprimentar meu pai.
Vou com a minha guia no peito, dou passagem pro santo, fecho o corpo e
peço a benção. Sempre acendo uma vela, e quando bebo, toco um tanto pro
santo, que é pra respeitar.
E se na
batida do atabaque eu não sentir mais emoção, é porque não bato mais
capoeira e estou perdendo a tradição; acaba que Oxalá se irrita e não
vai mais querer me ajudar.
Por isso
respeito o Tupã dos índios; acredito nas bruxas das crianças e na
bandeira do divino. E quando meu filho nascer, vou pra ele dizer e
ensinar, tudo aqui que vi e ouvi.
Sem me
importar em entender.
Porque os
tempos modernos tentam explicar as coisas com suas fórmulas e leis; tudo
bem, aceito, mas nem tudo pode ser explicado pela ciência. Se me sinto
bem com as simpatias e peço respeito às minhas tradições é porque eu sei
que elas têm seu poder. Como respeito os tempos modernos, quero que
respeite a minha tradição. Sou homem simples, tenho pouco estudo, mas
tenho raiz.
Mas os
tempos modernos e a televisão dizem que estou errado. Porque eles é que
sabem de tudo, e querem explicar a verdade das coisas. Mas não entendem.
Se não
entendem como querem explicar?
Por isso, se
a gente tentar explicar algo que não entende, vai acabar complicando
mais e estragando tudo. O que importa mesmo é a fé de que vai dar certo;
o resto a gente deixa como está, que no fim Nosso Senhor acaba ajudando.
Mas os
homens modernos são teimosos e não entendem que as vezes não entender, é
melhor que tentar explicar.
Por isso
estamos aqui com nosso carnaval, pra dar o maior exemplo de tradição.
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