Foi numa noite de São João, entre montanhas envoltas por uma aura divina, que Vila Rica foi fundada, e a fé será o pilar de sustentação dessa cidade ao longo de toda a sua história. Abençoada pelo Padre Faria e consagrada a Nossa Senhora do Pilar, pela fé que move montanhas igrejas se elevaram ao céu, e da terra brotou ouro para enriquecer seus interiores. As primeiras capelas, singelas, deram lugar a magníficas igrejas, com suntuosos altares. Para a inauguração da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, a mais rica de suas igrejas, foi realizado com pompa o maior festival barroco da história brasileira, o Triunfo Eucarístico, marcado pela suntuosidade das alegorias, das vestimentas e dos adereços, repletos de ouro e pedras preciosas.
Numa atmosfera carregada de conflitos entre o espiritual e o temporal, entre o místico e o terreno, o homem vai dividir a devoção às coisas divinas com a veneração às coisas terrenas, em especial, o ouro. Pois foi em busca das pepitas douradas encobertas por fina camada de óxido de ferro, encontradas anos antes, que a expedição de paulistas chefiada por Antonio Dias ali chegou na noite de 24 de Junho de 1698, para fundar Vila Rica. E ela nasceu assim, para brilhar como o ouro “que guarda no seio das montanhas áureos filões mais ricos”. O metal era tão abundante que podia ser encontrado nos leitos dos rios e nas encostas das montanhas. Milhares de aventureiros ali chegaram, vindos de todo lugar, ávidos por encontrar riqueza fácil naquele novo Eldorado. Os desbravadores paulistas, insatisfeitos com a chegada em massa de portugueses, pernambucanos e baianos, se revoltaram com os forasteiros, culminando na Guerra dos Emboabas. Como esse conflito demonstrou a fragilidade do controle da Coroa Portuguesa sobre as minas de ouro, foi criada, em 1709, a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro.
Com a vitória dos forasteiros, a exploração das jazidas se tornou mais democrática. Aos paulistas, baianos, pernambucanos e portugueses, se juntaram milhares de africanos, trazidos para o trabalho escravo nas minas. No curto espaço de tempo entre 1700 e 1800, a região de Vila Rica teve uma extração de ouro equivalente a toda a produção aurífera do resto do mundo entre os séculos XV e XVIII. Esse fato permitiu o surgimento, do nada, de uma civilização extraordinária, alimentada pela vaidade, pela soberba, pela competição e pela genialidade do homem.
As linhas sinuosas das montanhas e o espírito criador do homem determinaram as feições de Vila Rica. De Portugal vieram mestres-de-obras, arquitetos e escultores, e com eles chegou o estilo barroco, que aqui se perpetuou no casario geminado, nos chafarizes, nas pontes, nos palácios e nas igrejas.
Nesse cenário da civilização do ouro, a vida social seguia o calendário religioso e era caracterizada pela segmentação. Apenas o espírito devoto propiciava o convívio entre as diferentes camadas sociais, através das irmandades religiosas leigas, que agrupavam a população segundo o critério racial. Havia as irmandades dos brancos poderosos, dos negros, dos pardos, e cada uma delas tentava demonstrar a sua força, construindo as mais ricas igrejas. Diante da aversão dos brancos pelo trabalho artesanal, os mestiços e negros encontram nas artes a possibilidade de ascensão social. Foi nesse contexto que Vila Rica deu ao mundo a genialidade do Aleijadinho, o mais importante artista colonial das Américas. Ao substituir o mármore pela pedra-sabão, ele rompe as barreiras estéticas do barroco europeu para dar expressão e força ao “barroco mineiro”. Também na pintura os artistas tiveram que encontrar soluções originais, usando pigmentos próprios da região, criando um estilo gracioso, que encheu o interior das igrejas com as formas e as cores de minas. O mais importante deles foi o marianense Manuel da Costa Athayde, que substituiu a sobriedade das pinturas européias, pela exuberância das cores tropicais, e deixou no teto da Igreja de São Francisco de Assis uma obra-prima da pintura ilusionista mineira. O centro do medalhão foi ocupado pela Virgem, de traços “amulatados”, cercada por uma orquestra de anjos “pardos”, que tocam banjos, harpas, violinos, ou seguram as partituras musicais.
A representação da orquestra de anjos no forro da Igreja de São Francisco traduz a importância da música. Também patrocinados pelas irmandades religiosas, compositores criaram grandiosas obras sacras, que eram executadas por orquestras locais, cujos músicos, em sua grande maioria, eram mestiços ou negros, libertos ou escravos. Havia mais músicos na capital das Minas do que em Lisboa, a capital do reino.
A vida política foi escrita em um livro de ouro, com a pena da escravidão, inspirada pelo sonho de liberdade e de independência. Como uma das características da atividade mineradora era o sistema de trabalho-recompensa, um escravo que descobrisse um veio era alforriado. Outras vezes a liberdade era comprada com o ouro escondido nos cabelos ou por diamantes engolidos. A saga de Chico Rei lembra a de tantos africanos anônimos, alforriados pelo esforço próprio mas esquecidos pela história. Ele teria sido capturado com toda sua corte, no Congo, para ser vendido como escravo no Brasil. Teria trabalhado na mina da Encardideira, comprado sua alforria e a de escravos oriundos de seu reino, restaurando em Vila Rica a sua corte africana. História ou mito, o cortejo do Chico Rei coroado pelas ruas calçadas de pedras, simboliza a resistência e a dignidade dos africanos no Brasil, e a ideal consciência de dignidade humana e igualdade racial.
O isolamento geográfico possibilitou a circulação de idéias que fizeram de Vila Rica palco de variadas rebeliões políticas. As pressões sociais decorrentes da rigorosa política implantada por Portugal resultaram em conflitos, envolvendo as diferentes camadas sociais. Em 1720 houve uma revolta contra a autoridade da Coroa, por causa da instalação de Casas de Fundição e a cobrança do Quinto, 20% de todo o ouro recolhido. A Sedição de Vila Rica, como ficou conhecida a revolta, foi duramente reprimida, Felipe dos Santos enforcado, e como conseqüência a região das minas foi desmembrada da Província de São Paulo, sendo criada a Capitania das Minas Gerais, com sede em Vila Rica.
O ouro, que era abundante, vazava por todas as frestas, e a fonte não era inesgotável. Em 1780, no auge da efervescência cultural, as minas demonstravam exaustão. O Fisco, sem levar em conta esse fato, para garantir os lucros dos tempos de abundância instituiu a Derrama, cobrança acumulada de todos os impostos atrasados.
Numa sociedade já impregnada pelos ideais iluministas, trazidos pelos estudantes que voltavam de Coimbra, cresceu na mente de poetas, juristas, militares e padres, o sentimento de indignação contra a opressão voraz da Coroa. Em 1789 formou-se um movimento libertário, que defendia um país independente de Portugal, cuja bandeira teria um triângulo vermelho representando a Santíssima Trindade, tendo a frase latina "Libertas quae sera tamem" (Liberdade ainda que tardia) a sua volta. O movimento foi delatado por um traidor, Joaquim Silvério dos Reis, que devia à Coroa e obteve o perdão da dívida. Com a prisão dos envolvidos, o processo-crime, denominado "Autos da Devassa", foi aberto. A maior parte dos acusados foi condenada ao exílio. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, único a declarar abertamente participação, foi condenado à morte e enforcado no Rio de Janeiro em 1792. Seu corpo foi esquartejado, as partes espalhadas pelos caminhos de Minas, e a cabeça exposta num poste em plena Vila Rica. Tiradentes, mártir da independência é hoje o primeiro na lista dos heróis do panteão brasileiro, e deixou as marcas mais fortes na história dos ideais políticos nacionais. Não viu sua nação independente e republicana, como sonhou, mas ficaria feliz em ver que neste ano do 220° aniversário da Inconfidência Mineira, na lista dos Presidentes da República do Brasil, os filhos das Minas Gerais são em maior número.
Com o declínio do garimpo, no final do século XVIII, a cidade viu sua intensa movimentação social reduzida à administração burocrática do estado. Em 1823 foi elevada à categoria de cidade, por D. Pedro I, com o nome de Imperial Cidade de Ouro Preto. Em 1897 perdeu para Belo Horizonte o status de capital de Minas, e parecia estar condenada ao esquecimento, à decadência total.
Mas a partir da década de 1920, graças à visita de um grupo de modernistas à cidade, que culminou com o tombamento como Patrimônio Nacional, Ouro Preto renasceu. Em 1938, o poeta Manuel Bandeira escreveu: "Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. (...) Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside seu incomparável encanto". O isolamento que impediu a modernização permitiu que guardasse sua feição original de jóia rara, obra-prima esculpida por mãos de artistas entre as montanhas das Minas Gerais.
Por representar uma obra-prima do gênio criativo humano, e aportar um testemunho excepcional de uma tradição cultural, Ouro Preto foi a primeira cidade brasileira tombada como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. E voltou a atrair multidões de forasteiros, ávidos por encontrar o tesouro. O tesouro que é o maior conjunto de arquitetura barroca do Brasil, que enriquece o espírito, que arrebata a alma. Esses forasteiros, vindos do mundo inteiro, caminham sobre as suas calçadas, procurando nas pedras as marcas da passagem da corte de Chico Rei, dos pés de Tiradentes. Entram pelas portadas das Igrejas de Aleijadinho e fazem orações aos santos e anjos dos céus de Mestre Athayde. Nas antigas minas procuram resquícios do ouro, e no Festival de Inverno, ouvindo as orquestras revivem o amor proibido entre Gonzaga e Marília de Dirceu. E hoje, dia de carnaval, são arrebatados pela alma festeira dos mineiros, e descem as ladeiras atrás dos blocos carnavalescos das repúblicas de estudantes.
Com esse mesmo espírito festeiro, a Acadêmicos do Tucuruvi mostra o esplendor de Ouro Preto, relicário da pátria e testemunho único na história da nossa civilização. Uma homenagem orgulhosa dos paulistas, fundadores dessa Vila Rica, aos mineiros, idealizadores da Nação Brasileira, no 300° aniversário da criação da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro.
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