Introdução
Seis horas. ë noite em São Paulo. Meio mundo vai pra casa. Meio mundo vai pra vida. Até os novos raios de sol, muito prazer, muito trabalho. Nada falta. São Paulo é mundo, no mundo. Um rio de leito caudaloso não sujeito a regras da natureza, a estação. Tudo pode, e acontece. Há luz e escuridão, lágrimas e sorriso, carinho e violência, dinheiro e miséria.
Tocam os sinos na catedral da Sé. Quem percebe? Alguns ainda dormem. ë cedo. Do trabalho pra casa, uma meia-trava pra cervejada, pro taco, pro dominó, pro truco... e outros prazeres. Da casa pro trabalho, respirar fundo, horas longas e às vezes frias pela frente. É festa e meia. ë meia festa. Um paradoxo: o dia está acabando e começando ao mesmo tempo. Boa-noite, minha amada São Paulo.
A festa
Nos tantos cantos que a cidade possui efervesce a vida. Aqui, ali e acolá há boêmia. Para todos os gostos e bolsos. Há saudosismo, há vanguarda. O brega e o chique. E há quem não ligue para estilos. O importante é estar na noite. Jardins, Bixiga, Liberdade, barra Funda, Santo Amaro, Centrão, a noite paulista é uma gandaia só, sem hora para fechar as portas, arriar as cortinas, apagar as luzes.
Da boa mesa ao pé-sujo, uma infinidade de opções. Sentar no Terraço Itália e comer trutas olhando a Paulicéia do 41º andar é mais que luxo. Sentar no modesto, e honesto, Bar das Putas, na Consolação, e saborear uma bisteca tamanho família é mais que fome. É bem viver. Do supreme de faisão do La Cuisine du Soleil, no Maksoud Plaza, ao tia-gosto de testículos de galo do Valadares, na Água Branca, uma viagem. São Paulo permite isso em minutos. Como se pudesse ser omnipresente. Estar na Itália, por exemplo, e ao mesmo tempo na Índia.
Em seus limites há uma variedade incomensurável de cozinhas típicas. Assim, o peregrino da noite bandeirante pode degustar a comida napolitana na Camorra; a portuguesa, no Bacalhau, Vinho e Cia; a japonesa no Suntory; a chinesa no Sino Brasileiro; a indiana no Govinda; a árabe no Almanara; a alemã no Kakuk; a espanhola no Don Curro; etc...
Entre a Via Dutra, a Régis Bittencourt, a Fernão Dias e a Raposo Tavares o Brasil pulsa. A carioca feijoada está no tabu, no Atoto Obaluayê; a nordestina carne-de-sol e o jabá com jerimum estão no Baião de Dois; o churrasco gaúcho está na Costela de Ripa. Toda essa via crucies do garfo e faca passa também pelos feijões e massas do La farina, pelos palpitantes sanduíches do Ponto Chic, pela estonteante picanha do Boi na Brasa, pelas pizzas - religião paulista - do Micheluccio. E tudo isso pode acontecer no início ou no final de noite. Nas primeiras horas da manhã também pinta o breakfast do Boulevard Eldorado, na Avenida São Luís. É questão de escolha: ou barriga cheia para forrar ou para curar.
Sob luar, garoa ou temporal os noctívagos de plantão falam de e sobretudo. Digere-se Freud com Domecq nos barzinhos próximos à Puc, Usp e Mackenzie; cavalos, iates, mercado financeiro e terras com scoth puro no Búfalo Grill, Galery e Santa Colomba; drogas, "ganhos"e prostituição com Old Eight nas dezenas de boates das bocas do lixo e do luxo; e futebol com chop no Bar Elias. Há ainda os que preferem as quadras das escola de samba, ou as casas da avenida Ibirapuera, para turistas ou sambista ocasionais. Ou mesmo o bolero, o puladinho, em salões como o Atlântica e Patropi; o xaxado nos barracões de Santo Amaro, do Pedro Sertanejo; a gafieira do Som de Cristal.
Não há crise econômica que derrube o vigor da noite paulista. Se para os saudosistas ela já foi melhor, hoje, ninguém duvida... é muito maior. Tem movimento constante. Há pagodes por toda a cidade, todos os dias da semana. ë São Paulo Chic, JB Sambar, Só pra Contrariar. Há rock, funk, polca, jazz e músicas típicas de vários países por todos os bairros. Pode-se ouvir country e jazz no Piu Piu, MPB no Vou Vivendo; rock na Zoom; fado no Abril em Portugal. São Paulo está aberta às vontades. Curta-se artes plásticas, literatura e bracciolas no Bixiga; carros, motos, paqueras, marijuana e música pesada em Santana e nas prainhas (bares com cadeiras nas calçadas) da avenida Paulista.
Solitário ou a dois, não faltam programas. Ninguém perde a noite. Se não der para ser feliz, pelo menos a tentativa foi feita. Mil e um cinemas espalhados pela paulista, Centro, Consolação e shopping centers contam histórias de amor, sexo e ficção. Palcos iluminados dizem da vida, de verdade e de mentira. Das chanchadas a la Derci Gonçalves ao circunspecto Hamlet de Sheakspeare.
Livrarias e bancas de jornais oferecem títulos e mais títulos para quem sofre de insônia. Bancas de frutas tropicais, como a do Elias, há 30 anos na rua José Bonifácio, permitem aos maridos desesperados saciar desejos inesperados de esposas grávidas. Bancas de flores na Av. Dr. Arnaldo e no Arouche permitem um galanteio noturno ou um providencial salva-conduto na volta para casa fora de hora.
O território do prazer e da diversão apresenta ainda opções para os amantes do jogo. Boliche, bilhar, carteado e videopôquer podem ser encontrados em cada esquina. Turfe, cinco vezes por semana. Trote, duas. Uma noite na rua e um pouco de sorte arruma-se dinheiro para financiar as vindouras. Bolso cheio do cacau milagroso, dá pra aventurar um uísque escocês"na Rego Freitas um aconchego em suites com cascata natural no Caribe, no Opium, no Saint Moritz. Grana curta, o mundo não acabou: uma espremidinha e uma voltinha nos "sem letreiro"das transversais e paralelas da avenida Rio Branco ou nos providenciais drive-in, onde você é o galã. Sufoco total, a solução é recorrer aos srtip tease da São João e Aurora. Mas quem sabe é melhor esquecer tudo isso e correr até o Pacaembú, Morumbi, Parque Antárctica e Canindé para vibrar com Corínthians, Palmeiras, Lusa e Santos, onde tudo acaba em samba e cerveja.
Amor de cara, amor de coroa, satisfação hoje comprometida pelo vírus, mas ainda assim latente. Saunas mistas na Augusta, boates no centrão, anúncios classificados "dia e noite", abordagens a preço baixos na Cruzeiro, na Indianópolis, na Bento Freitas, Na Francisco Matarazzo, na General Jardim. Um risco assumido por quem sabe o que quer e às vezes nem fuma Minister.
O trabalho
Mas na noite existe o outro lado da moeda. Enquanto uns bebem o prazer, outros lutam pelo tão difícil pão de cada dia. Alguns cantam, alguns servem. Alguns representam, alguns vendem. Alguns escrevem, alguns se alugam. Agentes da diversão, às vezes psicólogos transvertidos de palhaços, ganham a vida fazendo sorrir, aliviando paranóias, curando feridas.
E em São Paulo a noite é pródiga. Há tanto trabalho quanto de dia. Casas como o Palace, 150 Night Club, Piano's Bar apresentam grandes nomes da música para deleite dos noctívagos de primeira hora. Pode-se ainda conhecer os nomes emergentes em locais menos sofisticados, mas não menos simpáticos, como o bar Brasil, o Saint Germain, o São Paulo Chic.
Nos bares e restaurantes pode-se admirar, além da comida, o atendimento feito por figuras que já entraram para a história da madrugada. No quartel-general dos jornalistas, o Bar Alemão do Parque Antárctica, o garçom Sinval senta à mesa para ouvir um freguês solitário ou para discutir a política econômica do país. No tradicional Parreirinha, os irmãos Waldomiro e Waldemar têm sempre piadas novas para descontrair o ambiente.
Médicos, jornalista, mecânicos, músicos, taxistas, jornaleiros, borracheiros, farmacêuticos, entregadores de leite, lixeiros, enfim, uma legião de trabalhadores que, ao lado dos que se divertem, forma a população noturna da cidade. Em meio à turba, como os artistas de circo, tiram leite de pedra na note. E à noite, na pedra da cidade, grafiteiros colarem o dia que vai nascer.